quinta-feira, 6 de novembro de 2008

"É preciso educar o educador"


Em Infância, a Idade Sagrada, a terapeuta Evânia Reichert fala do processo educativo e diz: "crianças mais respeitadas são crianças mais pacíficas".

É irônico o fato de que a humanidade tenha passado todo o século 20 tentando quebrar o paradigma do autoritarismo nos âmbitos sociais, políticos, educacionais e trabalhistas, e agora se sinta perdida diante da constatação de que a educação à moda antiga não funciona mais. É notória a confusão que cerca famílias e escolas. Como enfrentar o comportamento de crianças e adolescentes sem nenhuma regulação, prontos para o confronto? Como explicar o crescente número de diagnósticos de hiperatividade, fobia, ansiedade, depressão, que assolam os pequenos? Essas são as principais questões abordadas pelo livro Infância, a Idade Sagrada (Editora Vale do Ser), da terapeuta e jornalista gaúcha Evânia Reichert, que está rodando o país divulgando a obra e dia 13 de novembro vem a Florianópolis apresentar seu trabalho.

A motivação para escrever a obra nasceu em 2005, após o trágico suicídio de um menino de 10 anos, em Porto Alegre (RS). Na carta deixada para a família, o garoto alegou que não suportava mais viver na solidão de sua casa e a depressão dos pais. Para Evânia, o suicídio não é uma hipótese da infância. Era preciso compreender o que estava ocorrendo. No livro, a terapeuta é rigorosa com a atitude das famílias, especialmente com os equívocos que comprometem a fase inicial do desenvolvimento infantil.

Estamos em um momento de revisão nos modos de educar. Na minha opinião, se não há respeito aos adultos, é porque eles também não respeitam as crianças - avalia.
Para a especialista, a falta de auto-regulação é um dos principais problemas da atualidade. Além disso, pais e professores estão falhando quando não sustentam as esperanças das próximas gerações.
-Fizemos um saque antecipado do futuro - diz a autora, citando o filósofo e educador Mário Sérgio Cortella.

O que está ocorrendo com o processo educacional, tanto na escola quanto em casa?
Vivemos um período de crise entre as velhas formas de educar hierarquizadas e um novo modelo que ainda não está claro, não foi vislumbrado. Estamos no meio do caminho e, por isso, pais e educadores estão tão confusos, não sabem como lidar com a falta de regulações, com as emoções, a desautorização, a dependência das drogas, a violência. Porém, diferentemente de qualquer outra época, esse problema não está restrito apenas às camadas de baixa renda, está presente na infância e adolescência em todas as classes sociais. E uma mostra disso é o alto consumo de antidepressivos nessa faixa etária. É um momento de revisão nos modos de educar. Na minha opinião, se não há respeito aos adultos, é porque eles também não respeitam as crianças.

Como você avalia o modelo atual?
Repressivo em excesso, com características das décadas passadas. Não permite o desenvolvimento pleno da criança. A neurociência já provou que o cérebro não está formado nos primeiros anos de vida. Uma criança de dois anos não consegue guardar todos os comandos dados pelos adultos. Quando uma criança de dois anos diz "não", a gente está presenciando o nascimento da autonomia dela. Há pais que trucidam a criança nessa fase achando que estão colocando limites. Quando chega a adolescência, reclamam que o filho não tem autonomia. Em algumas situações, pode parecer que a criança é bem educada, certinha, obediente, ordenada, mas ela pode estar doente ou desenvolvendo traços obsessivos compulsivos. Há até comprometimentos fisiológicos que surgem por causa de uma educação repressiva, que é diferente de a criança ter limites. No outro extremo, temos os pais negligentes, sem limites, o que também não permite que a criança desenvolva a auto-regulação das próprias emoções, construa limites internos.

O que é auto-regulação?
Existem três limites na auto-regulação. O primeiro é o respeito ao outro e ao mundo. O segundo são os limites que precisam ser transpostos, superados pela criança para que ela se desenvolva. Por fim, é um limite interno, que só se desenvolve se houver uma dosagem ótima, nem repressiva, nem negligente, na qual a criança descubra até onde pode ir. Por exemplo, aprender a controlar a impulsividade.
Além disso, quando a gente fala que uma criança passou dos limites, é preciso verificar se os pais também não passaram. É preciso educar o educador porque normalmente ele reproduz a infância dele no modo de agir e reagir com os pequenos. É comum a reação impulsiva e impaciente dos pais. A mulher briga com o marido, por exemplo, e descarrega no filho porque não enfrenta o adulto.

Quais os riscos desses comportamentos para a fase inicial da vida?
O início da vida é a fase primitiva do desenvolvimento. Durante a infância, o cérebro está em formação, através de intensas sinapses. É o período do nascimento de novas e sucessivas capacidades cognitivas, motoras e afetivas. O primeiro ano de vida é o mais crítico. Aparentemente, pode parecer que não, mas qualquer evento pode afetar de modo irreversível o desenvolvimento da criança. É preciso ter cuidado desde a gestação: um gravidez serena, um primeiro ano de vida com afeto. Todas as experiências em escolas humanizadas revelam que crianças mais respeitadas são crianças mais pacíficas.

Qual o maior desafio dos pais na época contemporânea?
Compreenderem as etapas da infância, o que esperar em cada uma delas e como reagir. Entender que os velhos modos de educar não funcionam mais, estão falidos. O autoritarismo não funciona e os filhos não admiram mais os pais autoritários. É preciso se abrir para uma nova forma de autoridade que não é imposta pelo mando. As relações têm que ser mais democráticas, sem que haja o risco de que os filhos passem a mandar, como ocorre em algumas situações. Hoje, existem famílias nas quais o sistema é "filharcal" e não patriarcal. Isso também é grave. Pais, mães e filhos precisam de um ambiente onde haja respeito e equilíbrio. Vivemos um momento muito confuso e sofrido. Ao mesmo tempo, é irônico o fato de que nunca soubemos tanto sobre a infância.

Você está pessimista em relação a esse quadro?
É preciso compreender que estamos passando por uma mudança significativa. É interessante que na Renascença a situação do professorado era semelhante a que nós temos hoje. Naquela época, os professores não estavam suportando a rebeldia dos adolescentes. A diferença hoje é que o desafio não é só social ou político, mas psicológico. Mário Sérgio Cortella (filósofo e educador) disse uma vez que somos a primeira geração que não cuida suficientemente bem da próxima. Não sustentamos as esperanças das próximas gerações, fizemos um saque antecipado do futuro. Quando falamos para nossos filhos que não há saída, estamos os levando a viver o presente de modo tão intenso que chega a ser insano. Isso também está relacionado com a falta de auto-regulação.

Como se preparar para o desafio?
A educação precisa ser elucidativa, consciente. É preciso que os pais saibam o que está se passando, estejam atentos. As escolas humanistas sugerem que até os sete anos as crianças não sejam estimuladas só mentalmente, porque elas estão na fase do desenvolvimento motor, do movimento. Depois é que vem a maturidade cognitiva. É preciso desenvolver a sabedoria corporal. Hoje, os pequenos passam essa fase fechados nos apartamentos, na frente do computador e da tevê, e depois os pais acham que eles são hiperativos O que falta é grama, terra.

Qual a responsabilidade dos pais nesse processo?
O problema da educação está nos adultos, que estão cada vez mais desconectados. Queremos que as crianças sigam o nosso ritmo e neurose. Um cuidador bom é aquele que é capaz de estar atento ao tempo e às necessidades das crianças. Não ignorá-las, não sobrepor as suas necessidades sobre as delas. Não é ser um pai submisso ou voltado só para os filhos, é um modo de lidar no cotidiano. Maternidade e paternidade são oportunidade de desenvolvimento.

Sobre a mudança na lei da licença-maternidade, você acredita que dois meses a mais fazem diferença na formação da criança?
Sim. No mínimo, uma criança deveria ficar perto do provedor de afeto até os seis meses de vida. Nunca na história da humanidade os bebês ficaram tão cedo e tanto tempo em instituições. Hoje, muitos críticos falam sobre o custo da licença maternidade maior. Mas qual é o custo social e financeiro para se tratar os comprometimentos posteriores? Os surtos psicóticos, a depressão, o transtorno obsessivo compulsivo, problemas que afastam as pessoas do trabalho? Esses custos são muito maiores para o país que o impacto da licença-maternidade estendida.

Fonte: Diário Catarinense - 28 de Setembro de 2008 – Caderno Dona DC/Entrevista.